Cinema de Índio: uma realização dos Povos da Floresta
Uma resenha dos filmes "Fruto da
aliança dos povos da floresta" e "Os povos do Tinto Renê " de Siã Kaxinawá
Siã Kaxinawá é o videomaker pioneiro dos Huni Kuin (conhecidos
também como Kaxinawá, um grupo de língua Pano) do rio Jordão, no
Estado do Acre. Sua trajetória foi desenvolvida através de sua
participação nos principais movimentos políticos e econômicos do
Jordão, sob os auspícios de seu pai, Sueiro Sales, ampliou-se com a
exposição global de seu povo através de seus vídeos, em especial com o
premiado Os povos do Tinto René, e foi moldando assim seu papel de
líder.
Aqui comentarei dois de seus filmes. O primeiro denomina-se Fruto da
aliança dos povos da floresta, de 1987, baseia-se no grupo como um
todo e surgiu do impacto causado pelos movimentos sociais e fatos
políticos. Já seu segundo filme, intitulado Os povos do Tinto Renê foi
premiado pela Fundação Reebok, dos Estados Unidos, dois anos depois,
o The Human Rights Award.
Os Kaxinawá decidiram lançar mão de uma câmera de vídeo e se
tornarem realizadores de imagens a partir da iniciativa de Siã Kaxinawá,
após cursos realizados e participação no projeto Vídeo nas aldeias, do
Centro de Trabalho Indigenista - CTI, em São Paulo, no final da década
de 80.
Em 1982, Siã começou a estudar fotografia e vídeo, auxiliando
cinegrafistas como assistente, então passando a documentar os povos da
floresta e o movimento indígena e colaborando em revistas e periódicos.
Siã ganhou experiência na observação de cinegrafistas e técnicos com os
quais teve contato e em trabalhos realizados com a intenção, segundo
ele, de preservar seus direitos, sua cultura e tradições.
Em 1986, realizou seu primeiro curta-metragem denominado A estrada
da autonomia, e, em 1987, fez seu primeiro documentário, Fruto da
aliança dos povos da floresta, um dos vídeos aqui apresentados,
resultado de sua participação no projeto Vídeo nas aldeias. Em 1991,
realizou outro documentário, Os povos do Tinto Renê, o segundo filme
comentado.
A incorporação de uma tecnologia contemporânea de captação e
manipulação da imagem, principalmente quando se trabalha com
sociedades de tradição oral, foi iniciada em 1987 pelo CTI, organizada
por antropólogos, educadores, e indigenistas, com o projeto denominado
Vídeo nas aldeias, sob a coordenação do indigenista e documentarista
Vincent Carelli, capacitando os índios através de oficinas de realização
nas aldeias e de oficinas de edição na sede em São Paulo.
A manutenção dos direitos perante a sociedade dominante é também
uma prática do projeto Vídeo nas aldeias e é realizada a exemplo da
câmera de Siã, no vídeo Fruto da aliança dos povos da floresta, que nos
mostra as várias facetas da formação e atuação dos grupos e associações
para reivindicação da autonomia dos povos indígenas, seringueiros e
ribeirinhos do Acre, perante o sistema dos patrões da borracha. Este
vídeo, então, torna-se um documento a ser mostrado para a própria
sociedade, tanto nacional quanto internacional, na tentativa de chamar a
atenção para os problemas locais, na expectativa de angariar apoios e
buscar soluções.
A escolha desses dois títulos foi fundamentada no contraponto que um
vídeo faz ao outro. No primeiro vídeo, Fruto da aliança dos povos da
floresta, é registrado um dos momentos políticos mais efervescentes do
Acre, no final dos anos 1980, quando seringueiros e índios se
mobilizaram com vistas a um mesmo fim: livrarem-se do regime
seringalista e obterem autonomia, através da demarcação de terras
indígenas e da criação das Reservas Extrativistas.
As sequências do filme vão estabelecendo relações internas de um
conjunto de enunciados que situam o vídeo no contexto de um momento
histórico-político de mudanças importantes para os povos da floresta,
tendo como ápice o registro da morte de Chico Mendes. Todos,
lideranças dos seringueiros e índios, têm espaço para dar voz aos seus
interesses, que, naquele momento, tinham uma causa em comum: lutar
pela criação das Reservas Extrativistas e a demarcação das terras
indígenas. O filme silencia sobre os conflitos do passado entre os
seringueiros e os índios e, estrategicamente, expõe a criação da Aliança
dos Povos da Floresta como um projeto coletivo, capaz de superar as
diferenças.
Siã apropria–se da tecnologia audiovisual para a autodeterminação dos
interesses e resistência de seu grupo, por meio dos elementos polifônicos
e visuais que este recurso oferece para promover a troca de informações
entre ele, representando seu grupo de pertencimento, e a sociedade
envolvente.
Em Fruto da aliança dos povos da floresta, Siã utiliza-se de discursos
orais para transmitir suas ideias e acrescenta a mesma polifonia nos
diálogos imagéticos, valendo-se da justaposição das imagens para
construir seu próprio repertório iconográfico.
O segundo filme analisado, Os povos do Tinto René, marca outra fase na
vida desses ‘Povos da Floresta’, quando seringueiros e índios já estão
livres do regime imposto pelos seringalistas e gozando dos benefícios
desta liberdade, organizados em torno de um projeto cooperativista e
dedicando-se novamente às suas atividades diárias, sociais e rituais, sem
estarem submetidos a nenhum patrão. É um momento de alegria, de
celebração desta união, de mostrar os frutos desta aliança, como a
persistência e autonomia da cultura de cada grupo.
Transformou-se o contexto histórico-etnográfico e também a linguagem
do realizador do filme. Assim, a introdução do filme referido é produzida
nos moldes de um filme comercial, com legendas, efeitos de cores,
narração, e o realizador, Siã Kaxinawá, aparece logo no início do filme e
afirma ter buscado nos ancestrais, particularmente em seus pajés, a razão
para a realização do vídeo. Siã, exibindo as belas pinturas Kaxinawá em seu corpo, fala em Hatxa Kuin, sua língua, enfatizando sua cultura perante o olhar do ‘outro’, numa ação afirmativa, utilizando- se dos meios tecnológicos desse ‘outro’ para sustentá-la.
A câmera de Siã documenta a vida dos ribeirinhos, imigrantes
nordestinos, e retorna ao seringueiro. Siã mostra em detalhes o cotidiano
do seringueiro na Reserva Extrativista do Alto Juruá, que, na Aliança dos
Povos da Floresta, tornou-se não só seu vizinho, mas integrante do
universo Kaxinawá.
Neste segundo filme, a ideia de que os povos da floresta estão integrados
à natureza é apropriada politicamente por Siã, no papel de um
preservacionista. Ele vai delineando os grupos indígenas, Kaxinawá,
Ashaninka, com imagens do índio preservacionista, aquele que utiliza os
recursos naturais da floresta de uma forma sustentável. O índio que não
se corrompeu com o capitalismo, mas soube tirar proveito dele, utilizando alguns dos métodos que a sociedade envolvente desenvolveu
para lidar com as pressões do mundo contemporâneo. Então, neste
contexto, Siã pratica o discurso do ecologista, do preservacionista, que
se afirma como o detentor dos conhecimentos tradicionais para
preservação da floresta.
Siã é cuidadoso na sua narrativa visual, não se atendo somente nessa
ideia da ‘pureza’ do índio, mas exibindo um perfil mais amplo do que é
ser um índio contemporâneo. Por meio de suas imagens, é possível
tomar conhecimento de como esse indivíduo e representante de uma
coletividade se insere na sociedade globalizada, sem se tornar diferente
do que originalmente era. Desta maneira, retorna às suas práticas
culturais tradicionais, como meio de preservá-las, recriando e adotando
novas técnicas e métodos de subsistência e adaptando-os ao conjunto de
procedimentos comuns à sociedade dominante.
Viajando por vários rios, as imagens mostram a floresta do Alto Juruá,
com suas populações ribeirinhas, até chegar ao Rio Breu, onde vive um
grupo Ashaninka, falante de uma língua Arawak. Siã, sempre no papel
de observador, perceptível apenas na voz de narrador, informando-nos
de sua viagem no barco Chachú até as últimas cabeceiras do Juruá.
Ao final, Siã conclui seu filme afirmando ter cumprido uma missão
recebida de seus pajés, que, através de viagens oníricas, atribuíram-lhe a
incumbência de levar a mensagem que os espíritos da floresta lhe
designaram. Ele se apropria de um meio tecnológico da sociedade
envolvente, o vídeo, assim como os pajés, que são os tradutores de seus
sonhos e suas visões e ‘mirações’. Siã cumpre o mesmo papel de
mediador e tradutor de seus sonhos para a sociedade global, utilizando o
‘Cinema de Índio’, a ‘Televisão de Caboclo’ e o ‘Travel Channel’¹para
este diálogo.

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Notas:
1. Termos referentes às imagens produzidas por um realizador indígena (Cinema de Índio), ou 2 através das mirações provocadas pela Ayahuasca. "Televisão de Caboclo" é mencionado em Carneiro da Cunha e Almeida, 2002:382.
Resenha publicada na Revista Anthropológicas, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Disponível em: Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1): 355-363 (2009)